Trauma não é só sobre o que aconteceu — é sobre o que ainda pulsa.
- Lindalva M Pereira
- 17 de abr.
- 3 min de leitura

Ao contrário do que muitos imaginam, o trauma não está apenas no evento em si — ele habita o que permanece após o acontecimento. Não é o fato isolado que nos adoece, mas a forma como fomos (ou não fomos) capazes de processar emocionalmente aquela experiência. Trauma é aquilo que o nosso sistema psíquico não deu conta de integrar.
Ele se esconde nas entrelinhas da vida cotidiana:
em reações emocionais que parecem desproporcionais,
em medos difusos,
em corpos tensos e em constante estado de alerta,
em relações marcadas por fuga ou sobrecarga,
em silêncios que pesam mais do que mil palavras.
Quando não elaborado, o trauma se transforma num filtro que distorce a realidade. A pessoa não vive o presente, ela sobrevive ao passado.
As implicações de viver com um trauma não tratado
Viver com um trauma não reconhecido pode impactar múltiplas dimensões da vida. Não se trata apenas de tristeza ou ansiedade. Trata-se de viver com a sensação de que algo está sempre prestes a dar errado — mesmo quando tudo está “bem”.
Entre as consequências mais comuns, podemos observar:
Dificuldades em manter relações saudáveis, por medo de abandono, rejeição ou violência emocional.
Sintomas físicos persistentes, como dores crônicas, insônia, problemas gastrointestinais, fadiga.
Comportamentos autossabotadores, como procrastinação extrema, vícios, compulsões alimentares.
Perda de identidade: a pessoa sente que se desconectou de si, como se vivesse em “modo automático”.
Hipervigilância constante: uma mente que não relaxa, sempre esperando o próximo desastre.
Um exemplo realista (com nome fictício), que representa um caso de trauma, que supostamente não houve "um agente traumático": Mariana, 34 anos, nunca viveu um “grande trauma” segundo sua própria avaliação. No entanto, cresceu em um ambiente familiar onde expressar emoções era visto como fraqueza. Sempre que chorava, ouvia que estava exagerando. Sempre que expressava medo, diziam que era "frescura". Hoje, Juliana tem dificuldade em identificar o que sente, vive relações em que precisa ser "forte o tempo todo" e carrega uma culpa constante por não “dar conta de tudo”. Seu corpo, muitas vezes, expressa aquilo que ela não consegue nomear: dores no estômago, enxaquecas frequentes, ansiedade matinal.
Na psicoterapia, investigar o trauma é reconstruir a história com novos sentidos.
A investigação do trauma não se resume a procurar um “evento marcante”. Muitas vezes, o que machuca profundamente são vivências sutis, mas repetidas, que ensinaram ao sujeito: que ele não era suficiente, que o mundo não era seguro, que as pessoas não eram confiáveis. No entanto, durante o processo psicoterapêutico, alguns caminhos se abrem:
1. Linha do tempo emocional
Explorar quando certos padrões emocionais começaram. Quais foram os primeiros momentos em que o paciente sentiu medo, vergonha, abandono? Não se trata de buscar culpados, mas de compreender origens.
2. Mapeamento corporal e somático
Traumas são armazenados no corpo. Técnicas que envolvem a consciência corporal (como o grounding (aterramento), respiração consciente, toque terapêutico) ajudam o paciente a acessar memórias não verbais.
3. Padrões de repetição nas relações
Com quem estamos tentando reviver (ou consertar) o passado? O que nos atrai para contextos familiares, mesmo que dolorosos?
4. Reconhecimento de mecanismos de defesa
Fugir, agradar, se calar, se endurecer. Cada defesa tem uma lógica de sobrevivência — que um dia foi útil, mas hoje pode aprisionar.
5. Elaboração simbólica e ressignificação
Aqui entra o coração do processo: transformar o trauma em narrativa, dar nome ao que antes era só sintoma. A palavra, nesse contexto, é libertadora.
O objetivo da investigação não é “achar o trauma” como se ele fosse uma chave escondida. É criar um espaço onde ele possa ser nomeado, reconhecido e ressignificado com segurança. Porque o trauma, apesar de doloroso, também pode ser um ponto de virada. Quando olhado com acolhimento, ele se transforma e vira aliado e não oponente.
Lindalva M Pereira
Psicanalista Clínica - SJCampos - SP
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